Das caçadas de Nilo Texto de 2000. Estava grávida de Davi.
Cheguei à Candelária, uma das áreas da Mangueira, depois das duas da tarde. Caminhei naqueles labirintos e aportei na casa do meu tio, na qual ele vivia desde os anos 50. O tio estava numa cama, com o rosto coberto por uma toalha, magro e pálido. Quando a toalha lhe foi retirada do rosto, fitei sua velhice com um misto de reverência e curiosidade. Há quase dois anos não visitava Tio Nilo – Zizinho - seu apelido na família de meu pai. Ele abriu os olhos e fitou-nos, não reconheceu rostos, mas quando quase gritaram em seu ouvido quem era a visita, seus olhos distantes nos olharam com atenção. Meu tio-avô, irmão caçula de meu avô paterno... queria entrar em sua mente e conhecer todos que a vida não dera a oportunidade de encontrar: meu avô, minha avó, meus outros tios, meus bisavós... Queria ouvir suas vozes e saber de seus destinos.
No início, não consegui entender suas palavras, elas soavam distantes e fracas, um sussurro, que ele emitia com grande esforço. Sentei-me e decidi ouvi-lo. Ele falava, então, de suas dores e de suas impossibilidades, reclamava pelo fato de estar velho e alquebrado, dizia que queria morrer. Contou-me, muito triste, que não conseguia mais sentar, tomar banho, comer e que nem dormir lhe era possível; lamentou o incômodo que causava a todos na casa.
Eu ouvia suas palavras com a máxima atenção, percebi o quanto ele tentava me fitar, me ver, não conseguia do ângulo em que eu estava, tampouco me ouvia. Mudei então, sentei-me a seu lado; ironicamente, ele me escutava com o ouvido esquerdo, mas só me via com o olho direito. Ele percebeu, perspicaz que era, o meu genuíno interesse em conversar. De repente, seus olhos ficaram distantes, e ele olhou para um tempo longínquo e começou a divagar. Já não era mais o mesmo velho alquebrado, era um jovem, um menino, um homem forte e vigoroso.
Seus olhos se voltaram para o passado, e ele não estava mais preso a uma cama, eles recobraram o brilho há muito perdido. Então me contou de sua mãe de leite – Edvirges – que havia mamado nessa “preta” até os 5 anos; contou-me que gostava muito dela e de Conceição, e o quanto sua mãe as tinha em alta conta. As coisas vinham misturadas em sua mente, mas a sua voz mudou e também mudou a expressão de seu rosto, ganhou luz. Lembrou-se de suas caçadas... como gostava de caçar... tinha 10 anos quando pegou seu primeiro porco do mato, ainda de camisolas!!!... Como era melhor viver naquele mundo de memórias, o sorriso vinha sempre ao seu rosto, tão magro, tão enrugado. Um certo orgulho perpassou seus olhos quando disse de sua personalidade violenta e briguenta, de quantas tocaias seu amado cachorro Nero o havia defendido.
Conversamos sobre a mistura, e eu louvei a minha, ele lamentou o preconceito e contou de Rita – uma "preta" que ele namorara – disse-me que ia com ela para os bailes de brancos e não admitia que ninguém falasse nada.
- Quem ia ter coragem de falar alguma coisa comigo? Eu era brabo...
- Eu ia a todos os bailes, mas havia os de preto e os bailes de branco e não podia misturar não... mas eu ia a todos.
E, seguia. Eu, sem interrompê-lo:
- Meu avô – Manoel – era muito ruim. Foi morto por um escravo, por excesso de maldades...
Mas meu tio-avô louvou o seu pai, Amador, que, por época da libertação, dera um cordão de prata para as ‘negras’ e um relógio para os ‘negros’ e os mandara ir, mas nenhum tinha querido deixá-lo, porque ‘meu pai era um homem justo’. Perguntei pelo seu bisavô. E ele respondeu: “...ah...era também Manoel, mas eu não lembro dele, não”.
Falou de seus irmãos: Francisco, Antonio, Anorelino, Manoel, esse sim meu próprio avô, irmão de quem meu tio guardava grande mágoa. Quando ele falou de minha avó, Maria, cujo apelido era Santinha, houve uma mudança no seu tom; disse-me, com voz quase embargada, que ela era uma mulher bonita, bondosa, trabalhadora e muito sofrida. Nunca vi uma foto de minha avó paterna, o que conheci dela está na memória de meu pai, tudo muito vago e distante. Mulher sofrida... também não conheci minha avó materna, Maria; morreu quando minha mãe tinha 6 anos, era sofrida e muito batalhadora...realidade muito presente na nossa terra.
Perguntei sobre as noites na mata, os seres da floresta. Ele ficou sério e me disse que, como bom caçador, dormia sozinho na mata muitas vezes. Que só teve uma visão, e que esta ficara em sua mente para sempre; era ali, naquela cama, que ele pensava mais sobre essa imagem, esse encontro. Pensava no ser que havia encontrado, e a visão parecia até maior e mais real. Esse ente tinha olhos vermelhos e um círculo vermelho no peito e possuía uma coroa muito grande. Quando o viu na floresta, assustado, meu tio apontou-lhe a espingarda; o ser fitou profundamente seus olhos, pegou sua espingarda e jogou-a longe, sumindo na floresta. Tio Zizinho lamentou não ter tentado conversar, mas o medo dos dois os impediu, principalmente o dele.
Enquanto eu o ouvia atentamente, ficava a pensar o quão certeiros estavam seus pensamentos, o quão lúcidos; entristeceu-me pensar nisso, porque senti sua dor e senti medo da morte. Pensei na insignificância de uma vida e, ao mesmo tempo, na sua magnitude e significância. Somos todo o tempo um paradoxo.
E eu que gerava o novo dentro de mim, o absoluto início do bebê dentro do meu ventre e fitava o fim que logo viria para meu tio...tudo isso me encheu de sensações e pensamentos que não pude controlar e que me acompanharam por todo o caminho para casa e além. Ao mesmo tempo em que ele desejava ter mais alguns meses para ver o meu filho, ansiava que a morte viesse logo; se agarrava à vida e a mandava embora, como num jogo dos tempos da infância.
Estive lá por duas horas, aproximadamente. Fiquei com meu tio, a ouvir suas memórias. Quando ele se livrou do fardo de sua realidade e voltou seus olhos para o passado, vi um menino de novo, vi sua vida correr crispada em seus olhos. Ele queria contar muito mais, ele tinha muito para contar. Não lembrava e nem interessava lembrar coisas daquele cotidiano triste, mas, sim, do tempo em que suas pernas corriam, seus braços eram fortes e que ele não tinha tanto medo da morte e da vida.
Foi certamente uma tarde especial com meu tio. Nunca esquecerei. Marcou um tempo em mim. A brevidade da vida, nossa transitoriedade me atingiram como um raio. Por isso, e, por respeito a ele, esforcei-me ao máximo para ouvi-lo e compartilhar de seu mundo mental, ora turvo, ora vívido, que ele me oferecia sem pedir nada em troca.